Escola não controla acesso, troca carteira por mesa comunitária e atrai jovens e adultos dos bairros mais violentos de São Paulo
CAROLINA DANTAS
DA EDITORIA DE TREINAMENTO
DA EDITORIA DE TREINAMENTO
Uma escola localizada no centro do chamado triângulo da morte de São Paulo –Jardim Ângela, Jardim São Luís e Capão Redondo– mudou a rotina da região ao ajudar a resolver problemas dos frequentadores, em vez de só propor soluções, como é comum no ensino.
O Cieja (Centro Integrado de Educação de Jovens e Adultos) Campo Limpo funciona de portões abertos. Três edifícios compõem a escola, junto a um pátio interno, cercado por árvores Primavera (Bougainvillea).
Não há carteiras nas salas de aula. Os alunos se sentam em grandes mesas redondas comunitárias. No refeitório, são servidos café da manhã, almoço e jantar. A escola municipal é um refúgio para pessoas com deficiência (há 282 delas), jovens que cumprem medida socioeducativa (há 20 deles) e para qualquer pessoa com mais de 14 anos que queira estudar e aprender a ler. A aluna mais velha, recém-alfabetizada, tem 92 anos.
A diretora Êda Luiz, 66, estabeleceu que a palavra-chave ali é acolhimento, independentemente do que aconteça e do que o estudante tenha feito no passado. “Escola só dá certo se lida com os problemas ao redor. Estamos aqui para ensinar, mas também para resolver”, disse.
O ambiente é permeável à comunidade: vizinhos entram e saem da escola a todo momento, inclusive para fazer as refeições. Moradores de rua e dependentes de drogas são recebidos no refeitório da mesma maneira que os estudantes matriculados, funcionários e professores.
Nas mesas, o clima é de harmonia, com todos se tratando pelo nome.
As questões pessoais dos alunos se tornam desafios em sala de aula. Adolescentes que cumprem medidas socioeducativas frequentam a escola -a maioria deles apreendidos por roubo, furto ou tráfico de drogas. Antes de chegar ao colégio, Ânderson Ailton Odorico, hoje com 24 anos, trabalhava entregando droga de um canto para outro da comunidade. Nunca foi pego pela polícia. Pisou em uma sala de aula pela primeira vez aos 20 anos, quando chegou à escola. Nunca havia feito uma refeição sentado a uma mesa até então.
A primeira lembrança que guarda é de, aos 4 anos, ter sido expulso de casa com a mãe. O pai estava jurado de morte. Obrigou a família a ir morar em outro lugar, sem se importar qual. Mãe e filho dormiram embaixo da Ponte do Socorro, em Santo Amaro (zona sul), por dois anos, até que uma amiga lhes ofereceu uma casa no Jardim Ângela, bairro com a maior taxa de homicídios da capital.
A mãe de Ânderson começou a se drogar. “Ficava chateado porque ela não me dava atenção. Passava correndo na frente dela e dava um tapa no cachimbo de crack”, contou. Aos sete anos, Odorico também entrou no mundo dos entorpecentes. Fumava maconha e, um ano depois, passou a consumir cocaína e crack. A mãe teve mais três filhos que, como ele, eram obrigados a pedir comida nas casas do bairro.
Eu não gostava de usar droga com a minha mãe. Não a reconhecia quando ela estava sob o efeito da droga. Para não usar mais com ela, fui sozinho para a cracolândia”, diz Ânderson.
Morou dois meses com outros usuários de crack no centro de São Paulo, período em que atuou como traficante de drogas. O educador Marcos Lopes o encontrou comendo detritos do lixo e ofereceu ajuda.
O rapaz foi levado para um centro de reabilitação onde passou oito meses internado. Pouco tempo depois, sua mãe morreu de câncer.
Êda deu um emprego a Odorico na escola e, por uma semana, abrigou, os três irmãos do rapaz em sua própria casa. “Tem gente que vai julgar nosso envolvimento. Mas vou te dizer: só funciona assim. Já tentei ajudar de outro jeito, mas o buraco é mais embaixo”, afirma.
Para despertar seu interesse em aprender a ler, a diretora deu-lhe um celular. “Ele queria paquerar por mensagem, mas não conseguia escrever. Usei isso a meu favor”, lembra.
Ânderson continua frequentando a escola, sabe ler bem, mas tropeça em algumas palavras ao escrever. Não usou mais drogas, exceto uma “ramelada com maconha”, como ele mesmo contou.
Sua meta é terminar o ensino fundamental e se tornar um bom mecânico. “Quero muita coisa. Ter uma casa, um carro, quero cuidar dos meus irmãos.”
Assalto
Nem sempre a tática do acolhimento dá certo. A professora Valeska Cizauskas, 31, especialista em Libras (Língua Brasileira de Sinais), conversou pessoalmente com o homem que a assaltou à mão armada.
Roubada em frente ao Cieja, em 2011, teve seu carro levado por três adolescentes, logo apreendidos pela polícia. Reconheceu os rapazes na delegacia e eles foram encaminhados à Fundação Casa.
Cerca de um ano depois, um deles foi estudar na escola. “Ele pediu para conversar comigo. Na hora, topei, mas fiquei muito mexida porque lembrei de toda a história. Só que eu trabalho com isso, todos os dias eu explico para os meus alunos que as pessoas precisam de uma segunda chance”, diz Valeska.
O jovem e a vítima acertaram que fariam uma oficina de pipa juntos. “Eu contei do medo que passei. Disse que ele poderia ter acabado com minha família por uma coisa tão fútil. Ele escreveu uma carta pedindo perdão. Disse que rezaria por mim. Também pedia para eu não fraquejar”, lembra a professora.
Os dois deveriam se reencontrar um mês depois, mas o rapaz, após frequentar a escola por algumas semanas, voltou a roubar. Foi preso pela polícia em Osasco. Cerca de 40% dos jovens que vêm da Fundação Casa desistem da escola da zona leste. A evasão geral dos alunos é de cerca de 18%, segundo dados do ano de 2013.
“Estamos concorrendo com um mundo violento, no qual ganhar dinheiro é muito fácil. E sem precisar estudar. Acho natural que alguns jovens ainda se sintam atraídos pelo tráfico. Ainda mais com a oferta batendo literalmente à porta do lugar onde moramos”, explica a diretora Êda Luís.
Quando um jovem chega ao colégio, a direção recomenda que nem professores nem alunos perguntem sobre o passado do novo estudante. É direito dele querer contar ou não.
Para todos os alunos, deficientes físicos, moradores da comunidade, ex-traficantes, traficantes, dependentes de drogas, jovens sob liberdade assistida, a mesma pergunta é feita: “Qual é o seu sonho?”. “O que me desafia é escutar, de início, que eles não têm um sonho. Meses depois, eles aparecem sabendo o que querem. Isso basta”, diz Êda.
Os alunos chegam, em geral, com defasagem no ensino fundamental em relação à idade que possuem. Os nove anos regulares do ensino fundamental, no caso dos Ciejas, são transformados em quatro.
Ali não se registram advertências aos estudantes nem há período de recuperação. Alunos com dificuldades nos colégios da região enxergam no Cieja a possibilidade de um recomeço. “Outros colégios desistem de alguns alunos tidos como problemáticos e os encaminham para um centro de ensino de jovens e adultos”, explica a coordenadora da escola Cristina Sá.
Todos os 14 Ciejas de São Paulo reservam um dia para os professores fazerem planejamento. A diretora usa as sextas-feiras para discutir casos específicos dos alunos e para formar os educadores na filosofia da escola. Neste dia, não há aula. ”É um trabalho de formiguinha”, diz Êda. Vários professores não se adaptaram e pediram transferência. “Tem gente que não acredita em um ensino que não impõe autoridade. Nós acreditamos”, afirma Cristina.
Além dos custeios básicos pagos pela Prefeitura (folha salarial de professores e funcionários, manutenção e merenda), o centro recebe R$ 78 mil durante o ano de ajuda do governo federal.
Num dos dias em que a Folha visitou a escola, um morador da mesma rua apareceu em frente à entrada, com um carrinho de sucata com o pneu furado, perguntando: “Cadê a dona Êda?”, “Preciso de ajuda para arrumar meu pneu”. A naturalidade do pedido mostra como a integração com a comunidade funciona.
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