Texto e fotos: Larissa Valença e Ludimila Honorato
O portão fica aberto e qualquer um pode entrar das 7h às 22h30: há idosos, adolescentes, deficientes e menores de idade infratores. Nas salas, grupos de 4 a 5 pessoas estudam por cerca de 2 horas sobre um assunto. Há paredes coloridas, flores e um jardim. Tem também o piso amarelo, um espaço pra fazer nada — e falar sobre isso —, reivindicado pelos alunos.
O Cieja Campo Limpo, uma escola para jovens e adultos, fica num dos bairros mais violentos de São Paulo, o Capão Redondo  segundo lugar no ranking da Secretaria de Segurança Pública do Estado de São Paulo em 2014.
cieja-portao_foto-ludimila-honoratoA escola, que era um centro municipal de ensino supletivo (Cemes), começou a mudar há mais de dez anos quando passou a usar os princípios de Paulo Freire para criar um ensino que dialogasse com a realidade das pessoas.
Para enfrentar a violência e o desinteresse dos alunos e dos jovens da comunidade, o Cieja aposta na democracia e no diálogo e virou referência no bairro até diante do crime organizado. Nem quando há toque de recolher o portão fecha.
“Uma vez passaram e falaram: ‘manda a tia fechar o portão.’ Conversei com os alunos, eles queriam aula, só combinaram de sair todos juntos no mesmo horário. Não fechei e não passaram mais aqui.”, conta a diretora Êda Luiz, que assumiu a escola em 2002 e começou as mudanças.
Também é ali que a comunidade vê um lugar seguro até pra resolver problema familiar ou médico, diz. No dia em que nossa reportagem esteve no local, Êda atendeu um morador de rua que buscava doação de colchão e recebeu o telefonema de uma mãe que chorava por conta do filho de 14 anos que desistiu da escola regular.
“Quando vem um problema, a gente não dá resposta ‘sim’ ou ‘não’. A gente analisa, vê o que pode ser feito, se tem instituição que pode ajudar e fazemos a mediação”.
Fugindo da educação tradicional, a escola leva em conta a bagagem que cada um carrega e dá ferramentas para que eles mesmos moldem o processo de aprendizagem por meio do diálogo.
O lugar do nadaRecentemente, a equipe pedagógica fez um questionário para saber o que os alunos pensavam sobre a escola. “Por incrível que pareça, eles acham super boa, interessante, mudariam muito pouco, mas falaram que tem dias que não querem ir pra escola. Queriam o lugar do nada: não quero fazer nada, mas quero ficar aqui”, relata a diretora.
Resolveram, então, construir o piso amarelo, um espaço e um tempo pra discutir o que é o nada e produzir conhecimento através disso, o ócio criativo. “O jovem não tem ideia do poder do conhecimento porque ele não produz conhecimento”, aponta Êda defendendo que a escola deve dar essa oportunidade.
cieja_esquerda-direita-Maicon-Bruno-Gustavo-Hugo_ludimila-honoratoTambém há outros canais entre os os estudantes e a escola. Por meio de questionários, eles dão sugestões e opinam sobre o Cieja. Nas assembleias, eles decidem se querem mudar algo e de que forma farão isso. O diário de bordo extraclasse, que é um dos métodos de avaliação do Cieja, é onde o aluno conta as experiências fora da escola — ao mesmo tempo em que incentiva a escrita.
Bruno Pereira, 17, que veio de uma escola regular, a ideia é boa porque a escola se importa com o que acontece com eles e dá espaço para falarem. “Achei interessante, gostei de contar a minha experiência, o que aprendo fora da escola.”
Os jovens também foram convidados a falar de si e dos sonhos deles em uma atividade de integração coordenada por André Luiz, que atua na TV DOC Capão e é parceiro do Cieja fazendo palestras e saraus sobre a juventude.
André é morador do bairro e criador do canal de Youtube com mais de 16 mil visualizações e do Facebook com mais de 4 mil seguidores. O objetivo é dar voz à comunidade, fazendo um trabalho de conscientização política por meio da produção de vídeos.
O diálogo e a autonomia para empoderar são premissas do educador brasileiro Paulo Freire, de quem Êda adquiriu, e depois implantou, os ideais de educação democrática e liberdade. Segundo a pedagoga Fernanda de Macedo, o ensino democrático desperta no aluno o senso crítico e um olhar mais humano, já que a democracia precisa de gente questionadora.
“Forma-se um cidadão que tem consciência de como agir em sociedade. Despertando isso na escola, os alunos passam a tomar as atitudes.”
Currículo da vidaEm vez de cobrar interesse e disciplina de quem tem referências distantes da escola e do comportamento tradicional, o Cieja dá condições para o envolvimento sem cobrança.
cieja-sala-de-aula-foto_ludimila-honoratoUma das formas de fazer isso é aproximar o currículo da realidade dos alunos. O professor de artes Luciano Braga diz que trazer a vivência do aluno para dentro da sala de aula ajuda o aprendizado. Com isso, o estudante passa a olhar o mundo e os problemas a sua volta, como defende a pedagogia da autonomia de Paulo Freire, aponta a pedagoga Fernanda.
“O professor tem que ter sensibilidade sobre o que pretende ensinar para mesclar o conteúdo com a realidade do aluno. Precisa se planejar a fim de que o conhecimento se torne significativo.”
Falar dos índios sem adotar a visão do colonizador ou a ideia de que vivem na selva, aproximou a questão da vida dos alunos a tal ponto que alguns de identificaram como indígenas depois do III Seminário Indígena, em agosto desse ano.
No fim de cada semestre é assim: o conteúdo e os alunos dos quatro módulos se juntam pra discutir temas e aterrar o aprendizado à vida deles.
Essa ligação faz a escola estar sempre aberta e próxima. Assim, os jovens que vão embora quando percebem que não se encaixam podem voltar quando sentem que é a hora.
Hugo Leonardo, 23, saiu da escola quando o filho nasceu, mas voltou e vê o Cieja como uma mãe, com as portas sempre abertas. “Até os 17, você faz coisas sem pensar, mas essa vivência serve. A mente evolui como se fosse uma escola. No início, eu vinha só para comer, com o tempo comecei a estudar.”
cieja-mural-libras_ludimila-honoratoAli não há provas para medir o conhecimento nem disciplinas que isolam a realidade de uma forma artificial.
Os alunos exploram a cidade, a história e a arte em atividades como visitas a exposições e museus  para garantir as 200 horas anuais  e aprendem em módulos de conhecimento. Os dois primeiros focam na alfabetização e os dois últimos tratam de linguagens e códigos (português e inglês), ciências humanas (história e geografia), ciências do pensamento (ciências e filosofia) e ensaios lógicos e artísticos (matemática e artes).
O foco do ensino sai da grade curricular tradicional e vai para a vida prática, conta o professor Luciano.
“Talvez ele saia daqui sem entender a equação de primeiro grau, mas saberá ir ao mercado, fazer uma compra e não ser enganado.”
Voz pros jovens
A opinião do aluno também conta na hora de definir se ele vai pro módulo seguinte. No fim de cada semestre, os professores e os alunos se reúnem num conselho e avaliam juntos o que foi apreendido e a evolução, explica a coordenadora Kátia Alves. Dali sai o resultado.
O objetivo de tantas etapas diferentes da escola tradicional é fazer o jovem perceber seu potencial, diz a coordenadora. “Falam tanto que ele é desqualificado que isso se torna um verdadeiro problema pra ele. E muitas vezes a escola regular reforça esse discurso, não vai contra.”
O diálogo e a valorização do jovem o trazem pra perto e desenvolvem nele o respeito pelo aprendizado e pela comunidade.
Gustavo Trentino, 16, repetiu três anos seguidos antes de ir pro Cieja e estranhou a falta de hierarquia.
“Achei muito diferente, não tinha que fazer fila aqui.”
Maicon Pablo, 16, foi pra escola por indicação de um ex-aluno amigo seu, mas chegou sem vontade de estudar. Depois, desenvolveu uma relação mais madura.
“Fora daqui, a gente gritava, falava palavrão, desrespeitava professor. Aqui não, aqui a gente respeita o professor e os mais velhos.”
No Brasil, os jovens de 15 a 19 anos representam cerca de 30% — pouco mais de 1 milhão — dos 3,5 milhões de alunos da Educação de Jovens e Adultos (EJA). No Cieja Campo Limpo, são 1.200 alunos e 35% estão nessa faixa etária.
cieja-frase-ludimila_honoratoDiversidade cultivadaO respeito se consolida com a valorização da diversidade no Cieja. Ali há espaço para alunos com necessidades especiais, não há limite de idade nem restrições por histórico de criminalidade.
Os alunos com deficiência são avaliados ao chegar e têm aulas junto aos demais, de acordo com o grau de desenvolvimento cognitivo. Em paralelo, há atendimento especializado para desenvolver as habilidades. Os surdos exploram o som por meio das vibrações e desenvolvem a coordenação motora por meio dos instrumentos musicais.
“Dependendo do grau, uma pessoa com necessidade especial pode não ser alfabetizada, mas mostramos aos pais que ler e escrever não é a prioridade dela. Assim, exploramos outras capacidades”, coloca o professor Luciano Braga.
Mateus*, que chegou à escola depois de ter perdido a visão e sem aceitar a deficiência, resume sua história em um verso:
“Cieja me fez voltar a acreditarDepois que me envolvi contigo,Vou sonhar”.
Com dificuldade para conseguir um trabalho, hoje ele vende pão de mel na escola. “Tem de prestígio, doce de leite e brigadeiro.”
Hugo Leonardo, o aluno que voltou à escola depois de ser pai, joga dominó com Mateus e revela: “Ele é craque!”. Para a pedagoga Fernanda de Macedo, alunos que convivem com outros que possuem necessidade especial passam a refletir mais e o processo educativo é construído coletivamente baseado em respeito, acolhimento e confiança.
A escola pública regular deve garantir que pessoas com necessidades especiais estudem com as demais, segundo a lei nº 7.853. Só que, na prática, é difícil haver uma integração completa como vista no Cieja, diz a pedagoga Fernanda. “Não adianta só dar acesso e não dar sala de apoio e não ter professor especializado.”
cieja-eda-luiz-foto_ludimila_honoratoAli também tem espaço para quem ficou marcado pelo envolvimento com o crime, como ex-usuários de droga e menores que estão cumprindo medidas socioeducativas. Pra incluir pelo estudo, a regra é não questionar as infrações cometidas, recomenda a diretora Êda.
Alexandre*, ex-aluno da escola, se envolveu com drogas e ganhou no Cieja uma chance agora no mundo profissional. Hoje, ele é ajudante geral de Êda.
Com alunos de 15 a 90 anos na mesma sala, se usa o potencial conflito entre gerações pra tornar o ensino mais rico. O celular, por exemplo, é usado para falar de comunicação, e os mais velhos contam como faziam antigamente.
Gustavo Trentino, 16, veio de uma escola regular e se sente integrado no ambiente de diferenças.
“Aqui, todos os alunos se ajudam, independente de ser mais velho ou ter alguma deficiência, mas é normal, é tudo aluno”.
Eles, que estão vivenciando essa metodologia  também em escolas regulares como a EMEF Presidente Campos Salles, em Heliópolis, e a Desembargador Amorim Lima, no Butantã  vão passar isso adiante, segundo Êda. Para ela, os alunos são os responsáveis por uma revolução nas escolas.
“Eles vão ver que podem interagir e ser protagonistas da educação.”